Quem me conhece sabe que o único feriado nacional que realmente me anima é o 25 de Abril. Pode parecer estranho para alguém nascido nos anos 80 e, portanto, sem qualquer memória directa dos eventos entre 1974 e 1976.
No entanto, crescer em Felgueiras nos anos 80 foi ser parte de uma sociedade híbrida, entre o antes de Salazar e o depois da revolução. Foi crescer no meio de lavradores que só calçavam sapatos para ir à missa, ao médico ou à feira. De mulheres com o lenço na cabeça e foucinha presa ao avental, homens de enxada ao ombro que baixavam os olhos e tiravam a boina quando tinham de falar com o “patrão.” Das crianças que iam à escola primária de manhã e à tarde trabalhavam numa fábrica de calçado por meia dúzia de tostões.
Foi ouvir dos avós que até à revolução não havia eletricidade, casas de banho, partos em hospital, vacinas para os filhos. Que o caldo se fazia de manhã e se esticava para o dia todo; que o papo seco (“biju” por Felgueiras) era só em dia de festa.
Foi perceber, ao entrar na escola, que a minha avó e o meu avô eram analfabetos e andar atrás deles no campo a tentar ensinar-lhes as letras, ou a dizer “sábado” em vez de “sábedo” ou àgua em vez de “auga.” A minha avó achava imensa graça às minhas correções — ainda consigo ouvir as gargalhadas consoladas que dava enquanto ouvia as minhas “aulas” de menina de 7 anos que achava que ela merecia saber ler e escrever.
Foi saber que o meu pai acendia o lume e levava os bois para o campo sozinho com 5 ou 6 anos antes de se pôr a caminho da escola primária. Que entre os 12-13 anos, tanto o meu pai como a minha mãe já eram trabalhadores a tempo inteiro.
Crescer nos anos 80 no meio de trabalhadores rurais e empregados fabris foi um banho de história sobre a vida da maioria dos portugueses na ditadura. Foi também ver o alargar de horizontes para a minha geração.
Aquela revolução, entre tantos outros méritos:
Permitiu que 3 avós analfabetos viessem a ter netos doutores, investigadores, professores, advogados, empreendedores, entre outras profissões.
Permitiu que as mulheres deixassem de ter os filhos em casa sem atenção médica, às vezes completamente sozinhas (como foi o caso da minha avó em duas das várias gravidezes).
Permitiu que se criasse um Sistema Nacional de Saúde e que todos os cidadãos portugueses, independentemente da classe social em que nasceram, tivessem acesso a tratamento médico sem terem de ponderar se tinham dinheiro para a consulta, ou se podiam pagar pelo tratamento de um filho.
E é também o dia que devolveu o sono ao meu avô quando percebeu que o filho já não teria que ir para a Guerra.
Criou um Portugal perfeito? Claro que não. Mas democratizou o acesso à educação e à saúde. Abriu as portas ao pluralismo de ideias. Em suma, melhorou a vida de milhões de portugueses.
Ainda eu não tinha nascido, mas o 25 de Abril já era o primeiro dia do resto da minha vida.
Daniela Melo