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Tony Miranda apresentou a nova coleção “Recomeçar 2023 – Liberdade e Paz”

Começou a ser desenhada durante a pandemia e, desses dias, guarda o preto e o branco – e os cinzentos. Mas, pensando no futuro, “Recomeçar 2023” é também uma explosão de cor e de novas linhas. “É um incentivo para sair para o mundo, circular, conviver”, afirma o costureiro. Peças que tornam as mulheres mais luminosas. “Precisamos de mulheres afirmativas, com alegria de viver!”

Tony Miranda apresentou no dia 19 de outubro, em Lisboa, a sua nova coleção de moda dedicada a um tempo novo de “Liberdade” e “Paz”. Com cerca de 80 peças femininas e masculinas, o desfile do criador português juntou uma linha “couture” – pensada para ambientes de contacto social e de trabalho – com propostas da sua Coleção Privada 2023.

Juntando estas duas linhas de roupa, o desfile Recomeçar 2023 – Liberdade e Paz foi também composto por dois momentos. O inicial – noturno e um pouco nostálgico – é uma referência aos períodos de confinamento da pandemia da Covid-19.

“Esta coleção é muito especial porque, quando a comecei a conceber, estava fechado no atelier e via as ruas vazias pelo medo do contágio: não havia espírito para fazer coisas alegres”, recorda Tony Miranda.

Um ambiente mais escuro voltou a rodear o costureiro português em fevereiro passado, quando a guerra regressou à Europa. “Quer nos piores momentos da Covid, quer no início da guerra, criei modelos com tecidos pretos e brancos e com cinzentos”, afirma Tony Miranda.

Já o segundo momento do desfile representou a proposta do criador português para os anos seguintes. “Precisamos de recuperar dos traumas: precisamos de nos voltar a sentir livres!”, afirma Tony Miranda. “A economia está a crescer, precisamos de construir uma cultura de paz, uma cultura de convívio entre as pessoas, de diálogo, de compromisso”. Segundo ele, “precisamos de voltar a festejar juntos, sem nuvens negras.”

O segundo momento do desfile deu lugar à luz, cor, esperança e liberdade. Houve brancos, mas também verdes, rosas, azuis, vermelhos, dourados e prateados. A seda domina: crepes, cetins, tafetás e musselines. Muitos bordados, rendilhados e plissados. Na roupa de homem o preto e o azul dominarão – os casacos terão pormenores de requinte nas golas, nas bandas e nos bolsos, alguns detalhes de pele.

“Serão peças muito alegres! Roupa que incentiva a sair, a conviver, a estar com os outros”, descreve Tony Miranda. “As mulheres vão ser luminosas: precisamos muito das mulheres, de mulheres destacadas, afirmativas, com alegria de viver. Elas vão ser decisivas para construir os novos tempos de liberdade e de paz”.

Quanto às peças masculinas, Tony Miranda mantém a sua propensão clássica, elegante e discreta, para os “homens invisíveis”, como lhes chama. “Contudo, esta coleção vai ter também propostas para os homens que se atrevem, com tecidos, linhas e estampados muito afirmativos”, garante.

Há um elemento na conceção deste desfile que Tony Miranda faz questão de sublinhar.

“Queremos transportar para mais pessoas o trabalho que nos habituámos a fazer com clientes exclusivos: esta coleção é o nosso contributo para o período de recuperação que o mundo deve acentuar”, afirma o criador de moda. “Os anos 2022 e 2023 só poderão ser de recomeço se as pessoas se unirem para defender a liberdade e construírem a paz”.

O SF aproveita o momento para partilhar a entrevista que o costureiro natural de Felgueiras nos concedeu em Fevereiro de 2021.

Único criador de Alta Costura português

Tony Miranda começa por dizer que é um homem sem idade. “Não me pergunte a idade porque sou um homem sem idade”. Já não faço anos, eles passam e acabou…

Felgueirense, partiu muito cedo em busca do sonho de ser estilista. Caminhou horas a fio até França, onde fez um pouco de tudo até entrar no mundo para o qual estava predestinado. Não tardou a afirmar-se e a conquistar o reconhecimento de clientes em todo o mundo, alguns dos quais famosos como Charles Aznavour, Brigitte Barbot, Aristocratas, homens de negócio, políticos de entre outros. É o único criador português, na Moda, que tem um edifício na Avenida da Liberdade onde desenvolve as suas criações e recebe os seus clientes privados vindos de todo o mundo. Em Portugal desde 1989, Tony Miranda, nome incontornável da Alta Costura, aceitou conversar com o SF sobre o seu longo e interessante percurso de vida.

Pode-nos contar um pouco acerca da sua infância?

Nasci no Lugar da Terra Seca, na freguesia de Torrados. A minha mãe era costureira e o meu pai sapateiro. A ambição do meu pai é que eu desse continuidade ao trabalho dos sapatos, tal como fez o meu irmão. Para mim essa hipótese estava fora de questão! Interessei-me muito cedo pela costura porque costumava ajudar a minha mãe a fazer umas “coisitas”. Não eram muito bem feitas, mas fui aprendendo. O meu pai recusava a ideia de eu trabalhar na costura porque considerava não ser uma profissão para homens. Para me ver livre “desse fardo” que era estar um dia inteiro a trabalhar, quase na mesma posição, comecei a estragar sapatos, ao ponto de ficarem irrecuperáveis. Ele zangava-se! Um dia bateu-me com uma bota e acusou-me que ia ser um desgraçado. “Só tens ideias completamente parvas”, dizia. A minha mãe levantou-se e disse:

“Seja a última vez que lhe dás assim com uma bota porque podias tê-lo aleijado”. No dia seguinte decidi cravar uns cortes à mão, (o meu pai era especialista em botas) e eu cosi aquilo tão direitinho, tão direitinho que ele ficou pasmado. Disse-lhe: estás a compreender agora porque é que eu não quero mesmo ir para os sapatos? Ele levou um pouco a mal.

Sente que isso o possa ter motivado a querer concretizar os seus objetivos?

Sim, de certa forma! No entanto ainda criou alguns conflitos na nossa relação. Ele percebeu que eu estava a estragar as peças de propósito (risos). Foi aí que a minha mãe pediu a um dos melhores Alfaiates de Torrados, o senhor Pereira, para me dar trabalho na costura. Assim foi! Esse alfaiate não ensinava nada a ninguém… muita gente lhe tinha pedido para aprender e nunca aconteceu… A minha mãe trabalhava para o Padre Zé de Torrados e para a sua irmã. Fazia roupa… Como eram familiares do Alfaiate Pereira pediu-lhe se aceitava que eu trabalhasse lá. Começou assim a minha vida profissional. Entretanto comecei a fazer calças para os meus amigos da escola, diferentes e com pormenores. Foi nesta faseque comecei a ganhar algum dinheiro, pois já me permitia levar outros preços…

Foi a partir daí que se começou a interessar pela moda?

O Padre Zé inaugurou um Salão Paroquial que passou a estar sempre cheio de pessoas. Foi lá que vi televisão pela primeira vez… eu e muitos como eu… As pessoas na aldeia, naquele tempo não sabiam o que era uma televisão. Tinha curiosidade em ir lá ver, mas o meu mestre dizia que não havia tempo… nós trabalhávamos de quinta a sábado até ás duas horas da manhã. De segunda a quarta ele fazia a “sua sesta”. Trabalhávamos pelos dias que estávamos tranquilos. Um dia consegui adiantar o trabalho e disse-lhe se não me deixasse ir ver televisão, ia na mesma. Era sexta-feira e anunciaram que ia dar uma passagem de modelos. Ia ver uma coleção em Paris… Se não me deixasse ia embora, nem que fosse trabalhar para casa porque já me desenrascava bem… apesar de ser à luz da candeia, uma vez que não havia eletricidade. Já tinha uma pequena clientela… Nesse dia passou um desfile da Christian Dior e fiquei completamente deslumbrado.

Quando viu o desfile da Christian Dior que idade tinha?

Tinha 13 anos. Depois de ver essa coleção, cerca da 00h00, a minha mãe ainda estava a trabalhar. Já era habitual… contei-lhe que vi uma coleção em Paris e que queria ir para lá.

O meu pai disse: “Se Paris fosse ali no quintal, eu já lá estava há muito tempo. Tu és um louco”, dizia ele. A minha mãe acreditou em mim e disse que sabia que eu ia para Paris. E fui. Não demorou muito tempo até decidir partir para França… Não. A partir daquele momento comecei a informar-me sobre quem era o passador na fronteira. Fiz um percurso a pé cerca de 55 horas. Quando cheguei ao passador que era de Riba de Ave soube que os filhos estavam em França a receber os que lá chegavam para arranjar trabalho a troco de um pagamento. Ele olhou para mim e disse que não podia ir porque era um miúdo. Eu respondi que parecia um, mas já ia completar 18 anos (risos). Disse-me que se era assim tinha que arranjar 12 mil escudos (12 contos) e depois ia lá para marcar a ida, uma vez que isso só acontecia em grupo. Comecei a arranjar dinheiro… Parte dele foi a minha irmã mais velha e a outra parte foi o senhor Guilherme Pereira (o alfaiate). Penso que naquela altura ele começava a ter medo de não ter muito mais para me ensinar (risos). Ele dizia que eu aprendia muito depressa…

“O título de Alta Costura não se atribui com facilidade. Tem que passar por um júri, entre outras etapas… tem que se provar o que se faz… “

Conseguiu então ir para Paris. Como foi esse processo?

Quando cheguei a Paris dirigi-me para uma zona que se chama Champigny, que tinha muitos campos. Era muito feio… estava com a ideia que ia chegar e ver luzes, tudo fantástico… entrei num táxi para ir para o destino que nos tinham programado. Eu ia pelo caminho a pensar que se aquilo era Paris era mesmo feio… dirigi-me para uma casa, uma espécie de armazém onde viviam cerca de trinta portugueses, com camas em fila. Fui recebido pelo filho do senhor que fazia a passagem em Portugal. Ele apercebeu-se que estava longe de fazer 18 anos… explicou-me que não poderia trabalhar. Respondi que queria trabalhar e não queria voltar para trás. Fizeram-se uns documentos em que o Padre Zé de Torrados também colaborou.

E como começou a sua atividade profissional em Paris?

Arranjei um emprego na construção, junto a esse armazém. Fiz um pouco de tudo. Naquela altura estava limitado. Não podia procurar outros empregos devido ao facto de não ter documentos. Podia ser apanhado pela polícia, por outro lado porque não sabia falar a língua. Quando tivesse os documentos poderia estar livre, mas ainda devia uns “patacos” ao sujeito que me recebeu (risos). Um dia pedi para fazer horas extras para pagar a dívida e não conseguia. Colocaram-me num dos piores trabalhos: trabalhar numa betoneira numa zona ingreme, com uma pá elétrica. Não podia parar porque como era elétrica puxava-me. Chegava ao final do dia com as mãos cheias de bolhas. Fui ao supermercado comprar umas luvas para trabalhar. Veio ter comigo um dos responsáveis pela obra, italiano, que me disse: “O quê, de luvas? Nós não queremos aqui maricas”. Já andava revoltado com a minha vida, peguei na pá e dei em cima dele. Ele fugiu para o escritório aos gritos a dizer que o queria matar. Fui expulso…

“Andei a vaguear por Paris até que as noites caiam… sem dinheiro, cheguei a dormir debaixo de um reboque de um camião…”

E o que aconteceu após ser expulso? Onde se alojou?

Tive que recolher os meus pertences e pagaram-me o que me deviam. Andei a vaguear até que as noites caiam… sem dinheiro, cheguei a dormir debaixo de um reboque de um camião.

Ao passar por essa situação não ponderou voltar para Portugal?

Não. Aliás, o meu pai queria que voltasse O meu objetivo estava bem definido e se saí de Portugal tinha que chegar lá. Dormi ao relento cerca de três dias…Adiante havia uma empresa responsável pela recolha de lixo na cidade, fui lá pedir emprego.

Como correu esse pedido?

O patrão e a sua mulher disseram–me que era muito novo e ficaram surpreendidos… Até porque naquela altura os camiões não eram automáticos como atualmente. Disseram-me que era um trabalho duro e que não ia aguentar. Perguntaram-me onde estava alojado… perceberam que era uma miséria. Refletiram e deixaram- -me ficar em casa deles: Colocaram uma cama no quarto do filho. Nem queria acreditar. No dia seguinte levantei-me muito cedo e quando me chamaram para o pequeno almoço só pensava no trabalho. Fui para perto dos camiões e comecei a falar com os mecânicos até porque aprendi muito rápido a língua. Havia uma vaga de emprego e eram três elementos por camião. Disseram-me que não tinha condições físicas. Mas ajudaram–me… sugeriram que eu pegasse nos baldes mais leves e eles pegavam nos mais pesados. O patrão concordou. O meu objetivo era ganhar dinheiro e apesar do receio deles era uma oportunidade. Em vez dos cestos pequenos eu ia buscar os grandes para mostrar que podia. Acabamos o trabalho mais cedo e elogiaram–me bastante. Descansei dois dias e depois conforme me sentisse via se pretendia continuar. Deram-me refeições e tudo o que precisava. Chamaram um médico da medicina do trabalho e ele disse que era um homem cheio de força, que podia continuar. Foi assim até ao período de Natal…

Passou o Natal com essa família?

Sim.. A esposa tinha uma máquina de costura. Acabei por pedir para a usar. Como ela aceitou, fui ao mercado e comprei tecidos para fazer peças para ambos. Fiz uns fatos e pedi-lhes para provar…. Não acreditaram que sabia fazer aquilo. Perguntaram-me para quem era. Disse-lhes que era para vender, mas era para lhes oferecer. Expliquei que as pessoas que os iam comprar tinham mais ou menos as mesmas medidas. Na noite Natal fiz um embrulho e ofereci-lhes. Eles choraram de alegria. Vestiram de imediato aquela roupa.

Foi a partir desse momento que deixou de trabalhar no lixo?

Sim. Eles disseram que nunca mais iria trabalhar nessa área. Respondi que precisava de ganhar dinheiro.

Deixaram-me ficar mais uns dias e o patrão referiu que se ia ocupar de me arranjar outro emprego.

O que mudou a partir desse dia?

Tinha o hábito de comprar o jornal François porque era o que tinha mais anúncios de emprego. As coisas não eram fáceis, dado que naquele tempo estavam a chegar muitos espanhóis e italianos para trabalhar na costura. Fomos a várias casas, mas alegavam sempre que era muito novo, inexperiente e vinha de Portugal… Se dissesse que vinha de Itália talvez tivesse mais sorte.

Acabou por dizer que era italiano…

Mais tarde. Cheguei a uma casa em que a patroa era espanhola. A dona Conchita… No atelier disseram-me que não se faziam peças novas. Mudavam-se as peças. Tinham 32 pessoas a transformar roupas de grandes costureiras. Pessoas que não se queriam desfazer de determinada peça, levavam lá para alterar. Transformava-se na medida do possível e pagavam fortunas. Aceitaram que ficasse lá, até porque era jovem e pensaram que pudesse ter ideias criativas. O meu patrão estava comigo e pediu que me dessem pelo menos três dias de des descanso.

Não entendi aquela atitude. Questionei-o… Disse que “tinha que tratar de mim”: das minhas mãos e que tinha que ir ao cabeleireiro para ir como um homem da moda trabalhar. Recordo a frase dele, “o lixo acabou”.

Era próximo do cantor Charles Aznavour, um dos nomes maiores da música Francesa de todos os tempos

E como correu a sua vida nesse Atelier?

Passado um ano deram-me a responsabilidade pelo Atelier. A minha vida estava a começar a mudar. O que pensei e sonhei estava a começar a se realizar. Estive lá dois anos. Levava trabalho para casa porque eu ganhava pela peça. Ganhava quase outro salário em casa… Vim a Portugal com a promessa que teria o passaporte, mas não tive nada. Tive que ir novamente a pé. Mas fui sozinho. Na passagem por Portugal refleti que estava confortável, com um bom salário e uma boa responsabilidade, no entanto não iria passar daquilo. Telefonei de cá para o meu patrão e disse que queria sair.

O que o levou a tomar essa atitude?

Ainda não tinha para onde ir mas que ele fosse procurando alguém para me substituir. Disse-me que não seria fácil encontrar alguém porque já era o principal criativo do Atelier. Ele compreendeu e apoiou-me. Havia um senhor, o Marcial que trabalhava comigo, um dia vinha vestido com um fato irreverente e com muito bom corte. Perguntei-lhe onde o conseguiu.

Ele respondeu que tinha trabalhado numa das melhores casas do mundo. Na casa Camps. Pedi-lhe a direção, mas ele alertou-me que lá se ganhava uma miséria. Apesar de pagarem mal era lá que se vestiam as personalidades mais importantes do mundo.

Tony Miranda criou o blazer (estilo homem) para senhora nos anos 70

Procurou a Casa Camps e como foi a partir daí?

Dirigi-me para um café nas imediações e perguntei se conheciam o senhor Camps. O dono disse-me que sim. Que era um homem muito pequeno mas muito elegante. Que era considerado um dos melhores costureiros do mundo. Para fazer ali um fato era preciso ser milionário. Esperei por ele ali e evidenciei que era mesmo pequeno, mas com uma elegância ímpar. Não tive coragem de ir. Voltei no dia seguinte e apareceu um senhor ao qual expliquei que procurava trabalho. Ele disse que não era preciso falar com o senhor Camps. Chamou o chefe do atelier, outro espanhol que me explicou como se faziam alguns fatos. Não sabia fazer aquilo, daquela forma mas tinha muita vontade de aprender. Nesse momento aparece o senhor Camps. Reparou no fato que eu trazia vestido e questionou-me se tinha sido feito por mim. Disse que “não estava mal”, mas que tinha que fazer muito melhor. Conversamos um bocado… quando lhe expliquei quanto ganhava recomendou-me que mais valia ir para o mesmo sítio porque nem daí a quatro anos iria ganhar isso (risos).

Aceitou a proposta?

Sim, sugeriu-me que trabalhasse com um oficial que estivesse mais familiarizado com a manufaturação de fatos para eu aprender.

Como foi a adaptação?

Comecei a ser o primeiro a entrar no Atelier. Quando o oficial chegava eu já tinha muito trabalho adiantado. Elogiou-me e disse que ia aprender rápido…Nem passado um ano ele chamou o senhor Camps e disse que era injusto eu trabalhar para ele…O senhor Camps disse que as contas de produção começaram a aumentar muito graças a mim. Comecei a trabalhar sozinho.

E quando começou a trabalhar por si…

Fiz um avental onde coloquei os instrumentos que precisava para trabalhar… havia sempre uma confusão à procura das tesouras e do giz por exemplo. Como não havia máquinas para toda a gente e esperavam uns pelos outros, comecei a calcular o andamento do trabalho dos meus colegas. Enquanto uns faziam uma coisa eu fazia outra. Não havia tempo a perder. Preguei um prego na parede onde colocava o meu relógio e de hora a hora tinha que atingir objetivos. Quando sai já ganhava tanto dinheiro como no anterior atelier. O Senhor Camps disse que eu era um caso raro. Entretanto aquilo começou a não correr bem…

Porquê?

Nós vestíamos o rei de Marrocos e normalmente um colega nosso viajava para lá com o senhor Camps. Um dia resolveu sair do Atelier e percebemos que foi o rei de Marrocos que lhe emprestou o dinheiro. Aquilo abalou-o muito. Era como se fosse um filho para o Camps. E roubou-lhe clientes. Aquilo começou a ir abaixo… Cada criador tinha os seus clientes e, entretanto, começaram a sair mais… Já não se via futuro. Um outro colega sugeriu se eu queria trabalhar com ele. Respondi que se fosse para fazer peças como lá, não queria. Se fosse para ter um posto importante ia… Ele disse que tinha que esperar e que me daria esse posto, por isso arrisquei.

Como foi a sua saída do Camps?

Falei com ele e ele concordou. Disse que fazia bem porque o meu colega era boa pessoa. Compreendeu que ele não iria “roubar clientela”, mas que iria criar outra. Explicou- -me que dificilmente eu teria futuro na Camps, e que com ele talvez fosse possível. Disse-me que ia continuar com a casa aberta, mas a política do Camps privilegiava a idade para se atingir objetivos. Havia naturalmente pessoas à minha frente.

Nesse novo emprego atingiu os seus objetivos?

Passados seis meses continuava a fazer peças normais. Disse que me ia embora e que preferia voltar para o Camps, pelo menos tinha prestígio. Ele disse que o prestigio “não se comia”. Acusou-me “de querer tudo” e que não andava a pé, mas a cavalo.

Então voltou a pensar mudar?

O que aconteceu é que num dia estava a almoçar e peguei no jornal. Fui ler os anúncios de emprego e vejo em plano grande: “Procura-se jovem com ideias criativas, para alta costura, qualificado…etc…” Já nem acabei a pizza, arrumei as minhas coisas e disse a esse colega que me ia apresentar noutra casa… Era no Ted Lapidus…

Conseguiu entrar no Ted Lapidus?

Quando cheguei estava uma fila enorme. Apareceu um grandalhão, italiano, que disse: “Quem for italiano fica. Quem não for vá embora”. Aquilo reduziu logo três terços. Pensei que tinha que cravar uma mentira. Perguntou-me de que parte de Itália era. Respondi que era da Sicília, Napolitano. Disse que não falava bem italiano porque a minha mãe era francesa e o meu pai era italiano (risos). Mas só se falava francês em casa. Naquele momento passou o Ted Lapidus, olhou para mim e disse: “Bonito fato”… quando o grandalhão soube que trabalhei no Camps não gostou muito, mas o Ted Lapidus disse que eu ficava e mandou-me entrar. O italiano não gostou mesmo nada. Entretanto o Lapidus disse-me que era capaz de ganhar mais do que no Camps. Esclareci que mais do que ganhar dinheiro, estava preocupado no posto de trabalho exposto no anúncio do jornal. Pediu-me que cortasse dois fatos e provou-os. Chamou a mulher e pediu-lhe opinião. Ela achou fantástico. Adorou o resultado final. A mulher pediu-me um fato para ela.

E é aí que surge o blazer feminino?

Sim eu fiz-lhe um blazer e ela adorou.

Toda a coleção de senhora foi baseada num estilo masculino, estamos a falar dos anos 70. Lancei a mini saia casquete e blazer estilo homem… posso dizer que correu o mundo inteiro.

Foi uma criação sua com a marca Ted Lapidus?

Sim. Um dia fui direto ao escritório e pedi a minha conta porque no final do mês ia embora. Não me davam aquilo que me prometeram que era o posto…

Mas refere-se a dinheiro?

Não. Eles dobraram-me o salário, não era essa a questão. Claro que precisava de dinheiro, mas o meu objetivo estava no cargo. O Ted Lapidus disse que fosse esse o problema que me aumentava, que não me ia embora assim.

E como reagiu o Ted Lapidus?

Disse que era destemido porque prontamente disse-lhe que queria o cargo do anúncio.. A esposa disse logo para despachar o italiano. Dividiram a sala… Eu fiquei a criar uma coleção e ele outra… O objetivo era ver se ele fazia uma coleção de senhora irreverente, mas faltava qualquer coisa.

Ele não começou a provocá-lo?

Sim. Um dia gozou com os portugueses e eu respondi-lhe à letra. Disse que era português com muito orgulho.

Mas essa coleção que fala continuou a ser um sucesso pelo mundo?

Continuei a fazer a coleção que foi um sucesso pelo mundo inteiro. Chegávamos a sábado e tínhamos que fechar a porta porque faziam fila para comprar. Só ao sábado faturávamos 250 milhões de francos. Uma loucura. As mulheres ficaram tão fascinadas que pediam o blazer mesmo justinho. Ás vezes andavam apertadinhas e nem estendiam o braço.

Foi nessa altura que deram o título de Alta Costura ao Ted Lapidus?

Passados dois anos foi lhe dado o título de Alta Costura, porque este título não se dá com facilidade. Tem que passar por um júri, entre outras etapas… tem-que se provar o que se faz… passou a ser uma casa de Alta Costura.

Este título, no fundo deveu-se ao seu trabalho?

Sim, não só a mim…

Como foi a reação das pessoas mais próximas a essas conquistas?

A minha família não estava muito a par. Sabiam que eu estava bem e que dei sempre o melhor para os ajudar. Só me lembro de o meu pai um dia ter dito: “Tenho pena que uma pessoa só esteja bem agora, que estamos velhos”. O meu primeiro dinheiro foi para lhes dar uma casa. Não queria que lhes faltasse nada. Quando os meus pais faleceram havia uma quantia de dinheiro no banco que me fez perceber que o dinheiro que enviava não foi gasto.

“Tinha um cliente, um dos banqueiros mais importantes da Suiça, que me apresentou todos os Principes Árabes”

Qual é a diferença entre uma peça de alta costura e uma peça normal?

A Alta Costura é um símbolo da complexidade do simples. Um fato de Alta Costura é elegante, feito com muita técnica e rigor, todos os pequenos detalhes são tidos em consideração desde o desenvolvimento criativo até diferença.

As pessoas que têm “possibilidades económicas excelentes” e que gostam da exclusividade e do luxo, querem algo único e diferente onde a criatividade não tem fronteiras, as criações são por isso sem limites. A Alta Costura é um “life-style”uma maneira natural e simples de utilizar e manusear coisas de excelente qualidade, exclusiva na arte, não só do vestir, mas de todo um  universo muito especifico. Atualmente, há poucas pessoas com possibilidades para pagar Alta Costura. Não devem existir mais de cerca de 500 pessoas no mundo inteiro. Cada peça é planificada e desenvolvida única e exclusivamente com um propósito, a satisfação do cliente, o que o torna especial. Uma peça dita “normal” está por isso ligada a uma linha em serie, onde também ela é pensada, desenvolvida com um determinado objectivo e conceito para um publico especifico, mas reproduzida muitas vezes para ser economicamente viável.

A partir de que momento é que se afirma individualmente?

Em 1978. Quando saí do Ted Lapidus fui trabalhar por minha conta. A clientela que tenho importante vem dessa fase.

“Vesti vários presidentes. Entre eles o ex-Presidente do Gabão, Omar Bongo, durante 33 anos”

Para que artistas trabalhou?

Jacques Brel, Charles Aznavour, Gilbert Bécaud, Brigitte Bardot entre outros artistas. Era eu que me ocupava deles. Ia para fora também. Comecei a ir para o Irão, porque conhecia o rei. Vesti vários presidentes. Entre eles o Presidente do Gabão, 33 anos.

Qual foi o cliente que mais o marcou?

Na Alta Costura um cliente passa a ser um amigo. Passam a convidar-nos para jantar. Mas sim houve um que me marcou mais… foi assim que conheci a minha ex-mulher e se hoje estou em Portugal foi por causa de tudo isso. É o poder de uma mulher… Esse cliente, o Principe Al-Faisel, da Arábia Saudita, era milionário tinha uma vivenda em todas as partes do mundo. Um dia encomendou-me 600 fatos de uma vez. Era impossível fazer. Ele disse que era óbvio que conseguia. Como não queria que viajasse em aviões comerciais e tinha três aviões privados, quando estes estavam ocupados, ele alugava uma companhia privada para me ir buscar a Paris e ir ter com ele. Lá jogávamos às cartas, passava a noite e regressava a Paris. Disse que foi aí que regressou a Portugal.

É uma história grande… Mas brevemente vou apresentar um livro e lá vai estar tudo. A apresentação deverá ser em Guimarães… Se não fazia em Torrados.

Foi uma história de amor que o fez regressar… Foi. Acontece… É o poder de uma mulher… Não tinha intenções de voltar para Portugal. Uma mulher que vi pela primeira vez quando entrei num avião. É incrível…

Em que ano volta a Portugal?

Regressei a Portugal em 1989 mas todas as semanas ia a Paris. Continuei com a boutique na rua Cambon, perto da Chanel.

Quando volta para Portugal teve dificuldades em encontrar pessoas para trabalhar consigo na sua primeira loja em Guimarães…

Tive dificuldades porque o método de trabalho é completamente diferente. Não se faz um costureiro de Alta Costura com facilidade. Não é só dar pontinhos… As pessoas que trabalham comigo receberam formação dada por mim. Ia todas as semanas para Paris mesmo assim. Quando abri a loja em Lisboa, no ano de 2000, deixei de ter hipótese de ir com frequência. Tinha um diretor em Paris que falhou comigo!

Era próximo do cantor Charles Aznavour, um dos nomes maiores da música Francesa de todos os tempos?

Eramos amigos sim. Ele esteve em Portugal na minha casa. A música dele “Mon Costume bleu” foi inspirada num fato que eu lhe fiz.

Há um estado de alma em relação à moda nacional que nunca o reconheceu…

Sim. Tive sempre bons clientes ao longo da minha já carreira não só internacionalmente como também em Portugal, sobretudo em Lisboa, Guimarães e Felgueiras. As instituições da moda nacional nunca me reconheceram. Nunca fui nem bem-vindo nem bem amado. Não só na Moda Lisboa, como também no Portugal Fashion, penso que existem demasiados loobies…

Andou recentemente pela sua terra de origem, por Torrados?

É verdade. Por acaso fui encontrar ainda traça da casa onde vivi. Gostei sobretudo de ver a Escola de Torrados. Eu sou um filho da terra e nunca escondo as minhas origens. Brevemente saberão mais no livro que estou a escrever…

Grande entrevista no SF 1367 de 24 de Fevereiro de 2021

Capa do jornal do dia 24/02/2021. Tony Miranda. Palco de ideias dos líderes locais. Semanário de Felgueiras
Capa do jornal de 24/02/2021

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