O comandante dos Bombeiros de Felgueiras disse esta semana ao SF Jornal que o sistema de combate “falhou” durante a vaga de fogos rurais que assolou o país e o concelho, salientando que, nos últimos anos, as entidades nacionais e locais têm-se concentrado na prevenção e descurado o investimento no combate.
Numa entrevista em que fez um balanço da semana fatídica, que afetou grande parte do Norte e Centro do país, Júlio Pereira é contundente nas suas críticas ao sistema de combates aos incêndios rurais, salientando que em Felgueiras “estivemos sós e por nossa conta”.
“Apostou-se muito na prevenção, mas descurou-se o combate. Não digo que a prevenção não seja importante, as campanhas e a gestão das redes primária e secundária são importantes, por exemplo, mas quando tudo falha é no combate que cairá [a responsabilidade] e a capacidade de resposta só nos cabe a nós” afirma, em entrevista.
Felgueiras sem ajuda externa entre domingo e quinta-feira
Sobre os acontecimentos na área de atuação sob a alçada dos Bombeiros de Felgueiras (recorde-se que a corporação da Lixa tem a sua própria área de atuação), Júlio Pereira descreve um cenário onde os planos no combate aos incêndios entraram em colapso devido, sobretudo, à falta de meios, tanto humanos como materiais.
“Tenho que dizer, com toda a clareza, que nos faltam recursos”
“O sistema de triangulação de meios entre concelhos colapsou, não havia capacidade de resposta para balancear. Felgueiras esteve sozinha, entre domingo a quinta-feira, sem qualquer ajuda externa, salvo uma intervenção de uma equipa de Fafe, em Codessais, que durou 15 minutos. E após saírem para acorrer a outro incêndio, ficamos entregues a nós próprios”, frisou.
Dados preliminares avançados pelo comandante apontam para um total de 29 ocorrências de incêndio rural em Felgueiras, entre 15 e 19 de setembro, alguns em simultâneo. Em termos de recursos humanos, o combate às chamas ocupou 292 bombeiros apoiados por 99 viaturas que, em cinco dias, percorreram cerca de 19 mil quilómetros.
Particularidades do território obrigam a intervenção “musculada”
Ao contrário das regiões afetadas por incêndios rurais de maior dimensão, Felgueiras não tem uma grande área florestal contígua. É, antes, um mosaico de floresta e aglomerados urbanos intersectado por estradas e vias de comunicação. Neste caso, a proximidade da floresta a habitações e indústria obriga a uma intervenção mais concentrada e decisiva, no combate aos fogos.
“O nosso grande problema são as ignições em simultâneo que nos obrigam a uma resposta rápida e musculada, porque estão em causa as casas e industrias”, esclarece, recordando o caso da ocorrência de múltiplas deflagrações, entre segunda e terça-feira, que esticaram até aos limites a capacidade de resposta dos bombeiros de Felgueiras.
“Peço há anos um Veículo Florestal de Combate a Incêndios”
“Tenho que dizer, com toda a clareza, que nos faltam recursos, não só materiais, mas temos a necessidade de mais um VFCI (Veículo Florestal de Combate a Incêndios), por exemplo”, explica, acrescentando que a corporação já tem dois veículos daquela classe, mas que precisa mais, devido às particularidades do território.
Prossegue, recordando que o atual sistema de proteção civil privilegia a distribuição de meios nos concelhos com grandes áreas florestais e que os argumentos de casos como o de Felgueiras, que pedem mais meios para responder a mais incêndios, mas de menor envergadura, são ignorados pelas entidades nacionais e locais.
Exemplifica, explicando que um pedido para um terceiro VFCI, realizado há poucos anos, foi negado, com a explicação que já tinham duas viaturas daquela natureza.
“Felgueiras tem a particularidade de ter que responder a múltiplas ignições em simultâneo e para isso precisamos de mais meios, veículos e recursos humanos, mas não foram sensíveis a este argumento”, explana, frisando que as corporações não têm a possibilidade de se candidatarem diretamente a fundos comunitários, para adquirir meios, por exemplo.
Para reforçar a resposta, a corporação teve que colocar no terreno viaturas destinadas ao combate a incêndios urbanos, meios por natureza limitados no combate aos fogos rurais. “Não entram no monte, por exemplo, ficam à distância, são limitados. Portanto, de pouco rendimento neste caso, porque não foram feitos para aquele tipo de serviço”.
Valeu, sobretudo, o grande esforço dos homens e mulheres que responderam à altura, dormindo apenas uma ou duas horas por noite. “Um sacrifício e uma entrega digno de se registar”, salienta o comandante.
Investimento em meios humanos também é essencial
Júlio Pereira defende que também tem que se apostar e investir mais nos meios humanos, salientando que dos 94 bombeiros no corpo em Felgueiras, pouco mais de 40 estiveram ativos na resposta aos incêndios na semana passada.
“Promete-se seguros, mas os que existem são ridículos”
“Promete-se seguros, mas os que existem são ridículos. Promete-se reformas antecipadas, já se fala de subsídios de risco e mais regalias, mas o que existe, é residual. Tudo promessas, que depois não acontecem. Tem que haver mais incentivo, se calhar apostando para uma maior profissionalização, por exemplo”, frisa.
Por outro lado, recorda que também terá que haver maior incentivo aos voluntários, para comparecerem quando necessários.
“Quando se fala de prevenção, também é isto: dar incentivos para termos mais bombeiros disponíveis para que quando acontece algo como agora aconteceu, tenhamos pessoal para responder, acompanhado pelos devidos meios materiais”.
“Temos que pedir desculpa a quem nos pediu auxílio e não pudemos atender”
Júlio Pereira fez ainda questão de salientar que devido ao excesso de carga de trabalhos na resposta aos incêndios florestais, outros serviços prestados pelos bombeiros foram temporariamente afetados.
O serviço pré-hospitalar esteve interrompido durante três dias, com a exceção dos serviços de hemodiálise. Por outro lado, muitos pedidos de auxílio para outras ocorrências simplesmente não puderam ser atendidos.
“Há toda uma situação paralela de que ninguém fala, infelizmente, e quem sofre são as pessoas. Na mesma semana tivemos que responder a 52 ocorrências não relacionadas com os incêndios e houve várias outras que não pudemos atender, simplesmente por falta de meios. Aproveito para pedir desculpa aqueles que nos pediram auxílio, para outras situações, e não pudemos atender”, frisa.
Sociedade tem que prestar mais atenção às causas do fogo por mão humana
Em reposta a uma questão colocada pelo SF Jornal, Júlio Pereira defende que a sociedade se deve debruçar mais a estudar as causas por detrás de fogo posto, seja intencionalmente ou não, e uma atuação mais incisiva das autoridades.
“Acho que tem que haver um trabalho profundo, de psicólogos e sociólogos, para perceber os motivos, mas também uma maior atuação das autoridades, nomeadamente em alturas de maior risco, no controlo de quem já está referenciado, por exemplo”, salienta.
Também aponta críticas aos meios de comunicação e a todo o aparato mediático em volta dos incêndios, com telejornais a abrir em direto dos teatros de operações, por exemplo, e de uma cobertura excessiva, em geral.
“Acho que a cobertura é em demasia”, acrescenta.
Agradecemos todo o apoio e solidariedade
Pouco depois do início dos vários incêndios que assolaram o concelho, o quartel dos Bombeiros de Felgueiras começou a receber donativos de água engarrafada e rações alimentares por parte de cidadãos.
“Não sei de onde surgiu o apelo, mas agradecemos às pessoas que responderam e vieram cá entregar vários géneros e nos mostraram solidariedade e apoio”, salienta Júlio Pereira, acrescentando que a Câmara de Felgueiras prestou auxílio na área das refeições, “um apoio importante”.
E conclui, repetindo o pedido de desculpas aos que não puderam socorrer, durante aquele período de extremo esforço por parte da corporação.
“Pedimos desculpa a quem não pudemos responder com a rapidez que se impunha, nas situações de incêndio, mas também àqueles que não pudemos socorrer, noutras situações, nomeadamente no serviço pré-hospitalar”.