Ficou-me na arca das memórias, o procedimento concursal para preenchimento de uma vaga de um jurista, numa autarquia à beira mar do norte de Portugal. De cada vez que participava em cada fase daquele concurso, ficava convencido que não já iria comparecer à fase seguinte.
Na verdade, acabei sempre por participar em todas, sendo a última, a da entrevista de avaliação de competências. Esta foi perante um júri dos mais exigentes, e com as perguntas mais difíceis que já alguma vez, em dezenas de entrevistas, me foram feitas.
Foi numa tarde bem quente, num dia de verão do ano de 2023.
Vem isto a propósito da prevaricação. Sim da prevaricação. Aquele júri estava muito interessado, e eu aterrorizado candidato a suar em bica, em saber o que sabia eu sobre tal assunto.
Nunca me tinham perguntado em concursos anteriores e não me lembrava ter estudado na faculdade tal assunto. Deu conversa, e pela cara de satisfação do presidente do júri, fui-me apercebendo que lá estaria a dizer alguma coisa de acertado, mesmo assim. Lembro-me também, de nesta entrevista vir à conversa o atual Primeiro-Ministro e a propósito da construção da sua casa em Espinho. Que sabia eu, da legalidade ou da ilegalidade da construção da mesma, do crime que teria cometido?!
No final da entrevista, se não foi nas fases anteriores que reprovei era nesta seguramente que tal ia acontecer, fiquei eu mais uma vez convencido. Pois bem, o resultado, é que acabei por obter nota de 16 valores, a mesma nota, daquele candidato, que ficou em primeiro lugar no concurso.
A verdade, percebo eu hoje, é que para este júri, evitar a pratica destes tipo de crimes pelas pessoas detentoras de cargos políticos em funções nos orgãos autárquicos era importante, e ter uma assessoria jurídica competente neste âmbito, mais ainda.
O crime de prevaricação ficou-me assim na memória. Reavivo-o hoje devido ao facto de no nosso concelho ele ser tão falado e escrito nos últimos tempos.
Ora, reza assim o artigo 11.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, na sua última alteração dada pela Lei n.º 94/2021, de 21/12: ”O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos.”, negrito e sublinhados meu.
Estamos perante um crime de natureza estritamente dolosa, isto é, que o agente (arguido) tenha atuado, com a consciência que conduziu ou decidiu esse processo, contra direito e que assim tenha agido com a intenção de beneficiar ou prejudicar alguém.
Acontece que esta “consciência” e esta “intenção” carece de ser provada em tribunal, principalmente, na fase de audiência de julgamento, se não for antes em sede de instrução. É que não basta a apreciação dos elementos de prova carreados em fase de inquérito, essencialmente documentos, perícias e testemunhas, a titulo de exemplo, e que bastam para deduzir uma acusação contra as pessoas agentes do crime.
Mais ainda, tem que se estar perante uma decisão contra direito e tomada por uma pessoa titular de de cargo político no exercício das suas funções, elementos a provar de caráter mais objetivo.
Chegados aqui, a pessoa leitora facilmente percebe, que aparentemente, a prevaricação é fácil de praticar, mas de exigente prova dada a natureza estritamente dolosa do tipo legal de crime. A consciência e a intenção de praticar a prevaricação.
Tem o tribunal ainda que definir o que é “decidir contra direito” e apurar um todo circunstancialismo e de gravidade necessária para sustentar uma censura criminal e ultrapassar a censura do mero foro administrativo no âmbito do exercício das sua funções.
Uma absolvição pela prática de uma crime desta natureza e com estas características desde a exigência de um dolo especifico, à exigência de uma prova cabal, e demais circunstancilaismo a apurar, não é nada que deva surpreender a pessoa leitora, como comprova uma breve viagem que eu acabo de fazer pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores.
É deste crime de prevaricação que o Presidente da Câmara de Felgueiras, o Vice-Presidente, um Vereador e por último, à data dos factos, um Chefe de Gabinete da Presidência, estão acusados pelo representante do Ministério Público.
A verificar-se uma condenação definitiva por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções é que o Presidente da Câmara de Felgueiras, o Vice-Presidente e o Senhor Vereador é que perdem o respectivo mandato se à data da decisão definitiva ainda exercerem o cargo político na qualidade de Membros de órgão representativo de autarquia local.
Não fosse a denúncia dos factos alegados, que deram origem ao processo visando os membros do atual executivo da Câmara de Felgueiras, anónima, e em caso de absolvição dos mesmos, contra a pessoa que denunciou, poder-se-ia participar criminalmente pela prática do crime de denúncia caluniosa, a melhor forma de se se defender a honra das pessoas agora acusadas.
Milton Brochado